Mãos nervosas apertam uma à outra, enquanto olhos inquietos buscam, lá fora, a paisagem que se vai passando rapidamente. Vê cercas, árvores, montanhas, alguns animais ao longe, mas, na verdade, não os vê. O céu estrelado de lua cheia que vislumbra pela janela fechada do ônibus, em outros dias lhe trariam paz. Hoje, aceleram-lhe as batidas do coração.
A música do fone de ouvido (que música?) não passa neste momento de mero ruído. O homem canta, mas ela não presta atenção à letra. Tem o rosto colado na janela à espera que a estrada se finde e que finalmente desça os degraus.
Se eu tivesse um carro - pensa. Mas que diferença me faria isso agora? Somente lhe aumentaria a ansiedade ao ter que preocupar-se também com o caminho desconhecido.
Do seu lado esquerdo o banco vazio acomodava sua bolsa. Eram 8 passageiros ao todo no ônibus que cabiam 40. A mulher gorda de blusa roxa que não parava de mastigar; a mãe e a menina loira que dormia com a cabeça em seu colo e os pés, para fora do corredor; o senhor de chapéu; os dois rapazes – os únicos que conversavam – nos últimos bancos do lado direito; a jovem de cabelos longos e ela. Essas são as vantagens de se tomar o último ônibus para uma cidade pequena – pensou.
Quando horas antes colocou seu pé direito no primeiro degrau do ônibus o que lhe veio a mente foi que estava mudando sua vida, reescrevendo seu destino. Ela, sempre tão sensata, recata, correta, via-se agora em um novo mundo.
Não tinha mais por perto a mãe ou o pai. Os irmãos eram grandes, crescidos. Haveriam de saber se cuidar. Já estava na hora de o fazerem. Ou que elas o fizessm por eles. Filhos, não os tinha. Deus não a havia agraciado com esta benção. A bem da verdade, nem com um marido.
Ao olhar as estrelas que se espalhavam no céu como pedrinhas brancas em um tapete escuro, tem consigo a lembrança da vida – feliz? – que tivera até aquele dia.
O banco tinha sido seu primeiro e único emprego. Entrara aos 17 – hoje tinha 28. Depois da jornada diária de trabalho e da hora e meia entre ônibus e metrô chegava em casa cansada. Lavava, passava, cozinhava, limpava para a mãe doente. O pai, há muito Deus o chamou. Os dois irmãos pouco lhe ajudavam. Cabiam às mulheres as tarefas do lar. Não eram, por isso, maus. Apenas repetiam o que lhes havia sido ensinado. Se ao menos tivesse uma irmã que lhe ajudasse a secar enquanto lavava, as tarefas tardariam menos a acabar. Não tinha. Portanto, trabalhava sem se queixar. À ela também foi ensinado que cabem às mulheres as tarefas do lar.
Quando a mãe se foi para junto do pai, sobraram-lhe os irmãos. Bons, amáveis, carinhosos, mas irmãos. Casaram-se. À ela sobrou-lhe então a casa e a tarefa de lavar, passar, cozinhar e limpar – para ninguém.
Foi quando ele apareceu. Tinha o sorriso branco e a alma pura – podia sentir. Os olhos de alguém que entende e conforta. À ele foi ensinado que se dividiam as tarefas e que, à mulher, davam-lhe flores. E chocolates. À ele foi ensinado tomar uma mulher nos braços e fazê-la sentir-se mulher.
Mas ele também se foi. Não como sua mãe ou seu pai, mas se foi. Foi para outra cidade – a sua cidade. Naquela que se conheceram tinha vindo apenas olhar.
Quando a carta chegou não pensou – ou pensou. Pediu as contas, arrumou a mala, subiu no ônibus que agora parava no destino final.
Com a bolsa ainda nas mãos, e não nos ombros onde deveriam estar - quem se importa? - , alcançou os degraus depois do senhor do chapéu. Procurou entre os que ali já estavam os olhos que entendem e confortam.
- Vieste para ficar?
- Sim!
E se abraçaram.
E foi exatamente assim que se iniciou mais uma história de amor.
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